Programa Líderes que Transformam inova e quebra barreiras na seleção para o setor público

06/04/2022 às 13:18

Elas vieram para o setor público para inovar. Com o mesmo nome e impulsionadas pela mesma paixão por projetos com capacidade de impactar a sociedade, Bruna Santos, Diretora de Inovação, e Bruna Éboli, coordenadora-geral de Seleção e Certificação de Competências da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) interromperam suas trajetórias na iniciativa privada e em entidades do terceiro setor por uma causa: aperfeiçoar os processos seletivos abertos para cargos de liderança em órgãos públicos e expandir sua aplicação para todas as esferas de governo. Assim, nasceu o programa “Líderes que Transformam”, lançado no início de 2022.

O mês especial das mulheres foi escolhido para destacar o trabalho dessas duas especialistas em gestão pública nesta entrevista ao site do Movimento Pessoas à Frente, embora a equidade de gênero no setor público não deva depender de datas para ser valorizada. As duas falam sobre os desafios superados e os estímulos recebidos para poderem inovar no recrutamento e na seleção de profissionais para a alta direção no serviço público.

  Com o programa “Líderes que Transformam” busca-se ampliar o leque, dentro e fora do setor público, para atração de pessoas habilitadas e adequadas aos cargos por meio de um processo competitivo e imparcial. “Quando se rompe barreiras de entrada, você coloca todo mundo no mesmo pé de igualdade”, diz a diretora Bruna Santos. A coordenadora, Bruna Éboli, acrescenta que a maior profissionalização na seleção permite “aferirmos competências, capacidade de liderança, de comunicação e de gestão”.

  Inspirado nas práticas internacionais dos sistemas de alta direção pública, o programa estimula instituições públicas federais, estaduais e municipais a aderirem a ele para promover a seleção de lideranças. A adesão e permanência no programa são voluntárias e contam com um sistema de incentivos aos órgãos aderentes, tais como possibilidade de financiamento dos processos de seleção, oferta de programa de desenvolvimento para as lideranças e participação em rede de altas lideranças públicas. Além disso, o programa deverá contribuir para ampliar a diversidade dentro do serviço público. 

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Movimento Pessoas à Frente – Qual o papel da Diretoria de Inovação da Enap na profissionalização do processo seletivo para cargos públicos? 

Bruna Santos, diretora de Inovação – Até 2019/2020, a diretoria de Inovação da Enap olhava muito para inovação na gestão pública. Hoje, ela olha para isso e para a forma como se faz política pública, desde a formulação até a implementação. Em 2019, a Enap e a Esaf (Escola de Administração Fazendária) se fundiram. Com isso, recebemos um legado da Esaf, que foi a realização de processos seletivos. A Esaf fazia concursos públicos. Quando a Enap e a Esaf se fundiram, chegamos à conclusão que faria sentido a Enap atuar como uma espécie de incubadora institucional. O que quero dizer com isso: uma organização onde a gente diz que o futuro do serviço público é pensado, é formulado. [A Enap] atua também como uma think tank governamental com a atribuição de ser uma incubadora para serviços inovadores, serviços verdadeiramente disruptivos para o setor público. 

– Por que o projeto Líderes que Transformam ficou no âmbito da Diretoria de Inovação da Enap? 

Bruna Santos – Porque é um projeto altamente disruptivo. Enquanto serviço, ele é uma plataforma, um programa que atua como um serviço. As lideranças que desejam contratar pessoas para os seus cargos, ou as pessoas que desejam se candidatar a cargos, elas recorrem a esse serviço da Enap buscando uma solução para aquele problema: que é atrair a pessoa para aquele cargo. 

– Esse projeto atinge outras esferas de governo? 

Bruna Santos – Temos atuado também em outros níveis federativos, principalmente nos municípios. Os estados estão no nosso radar, mas ainda não temos cases. Buscamos trazer as melhores práticas já consolidadas no setor privado, mas também práticas de diferentes países.  Não vou citar só os países da OCDE. Tem também outros países na América Latina, que já vêm trabalhando com isso: nesse olhar para as lideranças, como recrutar e desenvolver líderes. 

– Como o programa foi desenvolvido? 

Bruna Santos – Fizemos um benchmark de metodologias e trouxemos a Bruna Éboli para a Enap que, assim como eu, não é servidora pública e veio com a missão de desenhar e aplicar essa metodologia, desenhar esse serviço, que foca o olhar em como romper barreiras de entrada [nos cargos de liderança no setor público]. Isso significa ter um método meritocrático que olhe para as pessoas, para as competências comportamentais e para as técnicas das pessoas. 

– Como romper essas barreiras? 

Bruna Santos – O mundo hoje nos mostra que nem sempre as melhores pessoas estão no meu campo de visão, no meu feed de Twitter. Temos que romper cada vez mais as bolhas e conseguir acessar o conhecimento que está no mundo, num universo maior. Seja de servidores seja de não servidores. Isso é uma premissa do projeto. Quando rompe barreiras de entrada, você coloca todo mundo no mesmo pé de igualdade. Se você vai conversar com o CEO de uma empresa, a gente já assume que é um homem. Se é uma enfermeira, já assume que é uma mulher. Como a gente quebra esses vieses dentro de nós? 

–  Qual a diferença entre os programas Líderes que Transformam e o LideraGov 

Bruna Santos – Os dois programas caminham juntos; estão dentro da Enap para a estratégia para lideranças. O programa LideraGov não é programa de seleção; é um programa de preparo para líderes emergentes. O LideraGov não é executado pela nossa diretoria.  

O programa Líderes que Transformam é uma plataforma; é um sistema de altas lideranças. É olhar para o futuro da força de trabalho do governo sob o ponto de vista de como atrair e desenvolver talentos, como atrair e aferir competências para as melhores pessoas ocuparem os cargos de liderança.

Bruna Éboli, coordenadora-geral de Seleção e Certificação de Competências – A área que toca o programa Líderes que Transformam existe desde 2019. Começamos muito pautados em modelos que lembram concursos públicos, com provas e análises de títulos. Com o tempo, fomos evoluindo nossa metodologia. Hoje, aferimos competências, capacidade de liderança, de comunicação, de gestão. Os órgãos que optam por fazer processo seletivo têm a oportunidade de contatar com pessoas de diversas regiões do país. Hoje, o nosso processo é 100% online e nós já trabalhamos com linguagem neutra, ação afirmativa também para atrair públicos que historicamente já são minoria. Toda parte de avaliação é conduzida por profissionais com experiência em avaliação por competência. 

 Esse programa tem condições de aumentar a equidade no setor público? Como é possível caminhar para uma maior diversidade no setor público?  

 Bruna Santos – Acreditamos que as lideranças imprimem muita base para mudanças de cultura das organizações. No momento em que temos um processo seletivo de atração de candidatos, isso ajuda a quebrar esses vieses e pensamentos enviesados e temos automaticamente uma maior propensão em ter mais diversidade nos times. E por quê? Porque você já atraiu uma liderança com uma cabeça, com um modelo mental completamente diferente do status quo.

Acredito que esses processos, que essa mudança de cultura, acontece quando existem normas muito claras, incentivos normativos claros. Mas você precisa também ter soluções que possibilitem que a diversidade aconteça. E por soluções quero dizer sistemas como esse que a gente criou, que quebrem vieses, e quebrem fast tracks, que eram colocados como status quo. E cria também novas narrativas que tiram o estigma da diversidade apenas como uma pauta identitária, mas passando a ser uma pauta que é transversal, que está dada dentro de uma organização.

– Vocês duas vieram de fora do setor público. Vocês tiveram dificuldades de se adaptar? 

Bruna Éboli – Eu vim do terceiro setor e já trabalhei com melhoria de ambiente de negócios. Nos últimos dois anos, antes de vir para Enap, estava atuando com atração e seleção atendendo aos governos estaduais e municipais. Com a vinda para Enap, completei meu ciclo. Tinha experiência de município, estado, e agora fecho o ciclo com experiência de governo federal. Não desmerecendo o trabalho do terceiro setor, o poder de disseminação é muito maior numa instituição pública. O poder de disseminar, de impactar, de fomentar é muito maior. Em termos de dificuldades, aqui temos toda a questão do ambiente, a burocracia. Quando você empreende no terceiro setor, você monta times muito rápido, contrata tecnologia muito rápido. E aqui no setor público, não. Hoje, por exemplo, a pauta de seleção, quando olhamos para dentro do governo, temos pouquíssimas pessoas que vem com esse tipo de experiência. Então, temos que formar o time. Tem toda a questão das burocracias internas que fazem parte do setor público. Mas que não impedem que consigamos inovar, entregar e gerar impacto muito grande através dos projetos.

Bruna Santos – Também vim de uma organização do terceiro setor. Antes eu estava mais na área acadêmica, já tinha empreendido, e estava trabalhando no setor privado. Tinha trabalhado bastante com governos, mas não no governo. Tenho uma trajetória bastante semelhante à da Bruna Éboli: uma mulher relativamente jovem, trabalhando num ambiente que muitas vezes é altamente masculino. Antes mesmo de trabalharmos juntas aqui, me lembro que já estivemos em ambientes em que éramos as duas únicas mulheres em uma sala. Isso faz parte da realidade de qualquer mulher que vai alçando uma posição de liderança. 

– Por que deixaram a iniciativa privada e decidiram trabalhar no governo? 

Bruna Santos – Um dos motivos foi por um voto de confiança que a liderança da Enap fez em mim. Por mais que já tivéssemos trabalhado com governos, ainda éramos outsider e precisou que uma liderança olhasse para gente e dissesse: “Não me interessa se você não conhece todos os jargões da burocracia e as idiossincrasias e as siglas. A sua experiência agrega aqui, então você vem”. Por isso, acredito que é importante a liderança olhar para alguém de fora do governo e enxergar os talentos e apostar neles, mesmo sem o conhecimento do governo. Mas só quando se está dentro do governo é que se pode conhecer. Vou dar um exemplo bem simples. Quando entrei no governo eu me sentia como um estrangeiro que não entende o idioma, e o marco foi o dia em que eu falei de forma muito natural sobre orçamento empenhado e não liquidado. Até estranhei e me disse “quem sou eu?”. Mas é assim, acontece uma curva de aprendizado, você tem novos conhecimentos e esses conhecimentos se misturam e aí você consegue criar o novo, inovar dentro do governo.

– A adoção do processo seletivo aberto pelo setor público, como forma de preenchimento dos cargos, pode ajudar a superar essas dificuldades?

Bruna Santos – Sem dúvida. No meu caso, por exemplo, eu não vim por um processo seletivo aberto; eu fui convidada a me candidatar a uma seleção para a vaga e fiz uma entrevista. Se eu não soubesse de um processo seletivo ou do voto de confiança de uma liderança, eu não teria sabido da vaga. Porque uma das dificuldades de quem é outsider do governo, e entra para liderar um time, é ter legitimidade junto à sua equipe. Existe um caminho, que para algumas pessoas é curto, para outras é longo, para outras nunca acontece, que é o de ganhar a equipe. Para isso, quem chega ou tem que provar um alto conhecimento técnico ou demonstrar forte habilidade política para que as pessoas não te vejam só como um forasteiro que daqui a três anos vai embora. É aí que o processo seletivo dá legitimidade para quem chega como líder. E isso vale não só para quem vem de fora, mas também para alguém que vem de outras áreas de governo.   

Bruna Éboli – Muitas vezes, os cargos de liderança no setor público são ocupados por certas carreiras de dentro da própria administração pública. E acaba sendo difícil romper essas pequenas bolhas que se formam dentro do próprio governo. Mas não é impossível. Tenho exemplo aqui na nossa diretoria de uma servidora que ocupa hoje um cargo de liderança e ela é uma servidora originalmente de posição de nível médio. Ela conseguiu quebrar a bolha e chegar a uma liderança em razão do processo seletivo do qual participou.